sábado, 25 de julho de 2020



PORTALEGRE:
CLASSIFICAR PATRIMÓNIO,
APAGAR PATRIMÓNIO


            Segundo noticiou o jornal “Alto Alentejo”, na sua edição de 15/7/2020, os vereadores da Câmara Municipal de Portalegre aprovaram por unanimidade o início do processo de classificação de cerca de quatro dezenas de bens culturais existentes no concelho. Fizeram bem. É uma decisão honrada. Tal iniciativa só pode merecer o aplauso de quem reconhece valor inalienável à herança histórica, arquitectónica e artística dessa parte do Alto Alentejo.
            Propor uma classificação não é, contudo, classificar. É apenas dar início a um longo processo, decidido fora dos gabinetes municipais. Um rol tão grande, diz-se, pode mesmo criar obstáculos intransponíveis à classificação dos bens em causa. Bem sabemos o quanto os organismos que tutelam o Património Cultural português carecem gravemente de meios humanos e financeiros para acudir a todo o serviço que lhes cai sobre a secretária. Há quem lembre que propor a salvaguarda de tantos monumentos de uma só vez costuma ser estratégia usada por autarcas que desejam mostrar serviço perante os seus eleitores quando, na realidade, não têm qualquer desejo de classificar seja o que for (sabendo bem demais que a avalanche assim provocad será razão bastante para que tudo seja arquivado no fundo das gavetas). Isto afirma quem há mais de 20 anos trata desses assuntos… e tem sido responsável pela organização e tramitação de processos de classificação ao mais alto nível. Quero crer, todavia, que a intenção de quem fez tal proposta conjunta terá sido séria. O futuro confirmará ou não a minha percepção. Para já, merecem reconhecimento aqueles que a votaram favoravelmente, pondo a Cultura acima de outros interesses menos dignos.
            Não me pronuncio sobre os cerca de 40 bens culturais a classificar. Não há nenhum que não mereça a distinção. Ainda assim, sublinho a minha satisfação por ver entre eles vários edifícios de boa arquitectura do século XX, cuja dignidade e valor não são menores por não terem sido elevados em séculos anteriores, normalmente mais prestigiados. Não deixo todavia de estranhar que alguns edifícios sejam propostos para classificação depois de terem sido total ou parcialmente demolidos e, de seguida, abastardados ou substituídos por réplicas sem qualquer valor. Não me pronuncio sobre o rol proposto pelos gestores da Câmara Municipal de Portalegre e aprovado pela unanimidade dos vereadores. Espero apenas que a classificação seja concluída com sucesso e tenha como consequência a valorização, recuperação e/ou revitalização desse património concelhio, doravante – se assim se concretizar – mais protegido contra intervenções e vizinhanças que deveriam envergonhar toda a gente, a começar por quem as aprovou e/ou promoveu.
            Não obstante, parece-me justo manifestar a minha estranheza – e até a minha indignação – por tudo quanto foi apagado da proposta municipal. Refere o jornal “Alto Alentejo” que a lista incluiu imóveis arrolados no PDM de 2011, juntando-lhe propostas diversas que recebeu (não se sabe de quem e em que circunstâncias). Pretende proteger “casas brasonadas, conventos, igrejas, um conjunto habitacional popular e edifícios modernistas e contemporâneos, de elevado valor arquitectónico”. Perante essa justificação (aceitável, mas parcial), estranha-se a quase inteira exclusão do rico património arqueológico concelhio, que Portalegre teima em não cartografar nem inventariar, contribuindo para a sua destruição. Urge ainda perguntar se a parte norte do concelho de Portalegre ainda faz parte desse município ou, se fazendo parte dele, é conhecida por quem governa, administra e gere a edilidade há pelo menos uma década.
            Poderia referir a ausência nessa proposta de classificação de qualquer bem das freguesias de Alagoa e de São Julião ou, ainda, o estranho apagamento de vários bens valiosíssimos da freguesia da Ribeira de Nisa, como as ruínas medievais da Provença, a igreja de Nossa Senhora da Esperança (antigo Convento de Santo António) ou a Quinta de São Bento. É como se não tivessem, entre as suas fronteiras, património relevante… Mas têm. Na Ribeira de Nisa, propõe-se a classificação de um “convento de S. Francisco”, mas como tal edifício não existe nem nunca existiu na freguesia, é o mesmo que nada propor…
            Mais grave se me afigura todavia o tratamento discriminatório dado à freguesia de Carreiras, que já no inventário do património distrital, elaborado em 1943 por Luiz Keil, foi completamente ignorada. Naquele tempo, não havia estradas para lá chegar. Hoje essas estradas existem, o seu património está divulgado, mas parece que os gestores da edilidade portalegrense querem continuar uma lamentável tradição…
            Para a Câmara Municipal de Portalegre, pelos vistos, não tem qualquer valor o património carreirense. Nada valem a anta da herdade de João Martins, o povoado neolítico do Veloso e as ruínas da Alta Idade Média existentes nas suas proximidades, as estruturas megalíticas do Fraguil, as ruínas romanas ou medievais do Monte da Gente, a medieval Torre Alta ou Torre da Ribeira (ligada à família de D. Nuno Álvares Pereira), a calçada medieval que ligava Portalegre a Castelo de Vide e outros troços viários da mesma época, a quinhentista Torre Caldeira (mandada construir pela família dos alcaides-mores de Portalegre), a igreja de São Sebastião (edificada na primeira metade do século XVI, com capela dessa época, retábulos maneiristas já estudados a nível nacional, fachada barroca e pinturas murais tratadas em tese de doutoramento), um cruzeiro único de cantaria e azulejos (do século XVIII), pórticos de cantaria do século XVI, casas com varandas do mesmo século ou da centúria seguinte, a sua Torre do Relógio, etc. Nada disto teve valor para os autores do PDM de 2011, que ignoraram esse património, pondo-o em risco e contribuindo para a descaracterização de uma aldeia a que, com ironia, chamam “presépio”. A mesma opinião parecem ter agora, nove anos depois, aqueles que propuseram uma lista de património a classificar, ignorando esses e outros bem valiosos – e voltando a pôr em causa a sua sobrevivência.
            Há muitos anos que se fala no abandono dessa freguesia histórica do concelho de Portalegre, abandono que tem revestido várias manifestações indignas (a mais grave das quais foi a sua “extinção”, baseada em argumentos fraudulentos). É, assim, justo perguntar que destino teria essa parcela do território portalegrense se estivesse incluída num dos municípios vizinhos, Castelo de Vide ou Marvão. Na certa, Carreiras veria o seu património valorizado de outro modo – e não esquecido por pessoas que, com boa ou má intenção, com consciência ou sem ela, parecem querer apagar do concelho uma das suas mais belas e valiosas partes.
            Felizmente, a Lei permite que os requerimentos de classificação partam de simples cidadãos. A seu tempo, não deixarão de agir. Pode ser que essas iniciativas tenham mais sucesso do que a proposta de classificação da igreja carreirense feita há uns anos por técnica-superior do ex-IPPAR e que gente ardilosa enterrou sabe Deus onde…

RUY VENTURA
(artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", de 22/7/2020)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

AS IGREJAS DE CASTELO DE VIDE FAZEM FALTA

            Castelo de Vide é uma terra afortunada. Ao contrário de outras localidades – que ainda hoje lamentam os desvarios e vandalismos do passado, causadores da destruição de tantos edifícios valiosos –, a terra de Salgueiro Maia detém no perímetro do seu concelho um património invejável seja sob que ponto de vista for. É, ainda, uma vila venturosa pelas gentes que nela habitam. Sem os castelo-videnses, teríamos no mesmo lugar do Alto Alentejo uma qualquer feia povoação, sem identidade e sem brilho, abastardada por uma sucessão de atentados urbanísticos e patrimoniais promovidos pelos seus habitantes e autorizados pelos serviços camarários. Felizmente, temos o contrário disso tudo – e essa realidade eleva a urbe aos olhos dos portugueses e dos estrangeiros.
            Entre as pessoas que dão vida a Castelo de Vide, há cidadãos de corpo inteiro que, ao longo do tempo, têm assumido a defesa do seu património. Se no passado não conseguiram evitar a demolição de uma parte das suas muralhas (e, nelas, da célebre “Porta da Aramenha”, proveniente da cidade romana de Ammaia), bem como de alguns edifícios religiosos, como a importante igreja do Espírito Santo ou a matriz antiga de Póvoa e Meadas, pode dizer-se que há uma linhagem de gente que não tem deixado destruir peças importantes da sua identidade artística e arquitectónica (popular ou erudita). Uns chegaram à investigação, à escrita e à publicação (César Videira, João António Gordo, Raposo Repenicado, Diamantino Sanches Trindade, Maria Guadalupe Alexandre, Diogo Salema Cordeiro, Jorge Rosa, Rosário Salema Carvalho, etc.); outros, mantendo-se mais ou menos na sombra, trabalharam de outro modo pela salvaguarda, valorização e divulgação do património da comunidade – que é parte integrante, diga-se, do património nacional. Nos últimos anos, merece especial relevo a actividade da associação denominada Grupo de Amigos de Castelo de Vide, que tem aliado a defesa dos interesses locais à edição de livros e à impressão do jornal “Notícias de Castelo de Vide”, também disponível na internet sob a forma de blogue.  
            Se alguém pensa, por isto, que Castelo de Vide precisa de mim para “liderar” a defesa do seu património, decerto tem uma visão desfocada da realidade do concelho. Como investigador, é certo que assinei artigos na “Invenire – Revista de Bens Culturais da Igreja” (editada pela Conferência Episcopal Portuguesa) em que estudei obras de arte e tradições da vila onde nasceu Garcia de Orta; destaquei a localidade no meu livro “Santo António na Região de Portalegre”; publiquei artigos sobre as ruínas da ermida de São Paulo e sobre a igreja de Santa Maria da Devesa (com algumas novidades históricas); divulguei uma parte dos textos tradicionais do concelho em vários cadernos editados com a literatura oral da Serra de São Mamede; dei destaque à literatura castelo-vidense na volumosa antologia “Poetas e Escritores da Serra de São Mamede”; e, sobretudo, investiguei a toponímia, a heráldica, a história e o património do concelho no livro “A Vide e o seu Castelo”, obra hoje esgotada, a precisar de reedição revista e muito aumentada. Tal trabalho, que tenciono continuar (nomeadamente no doutoramento em História da Arte que me ocupará nos próximos quatro anos), não me transforma no entanto num elemento imprescindível na luta pela defesa do património concelhio, embora não lhe vire a cara, ao não esquecer que uma parte dos meus antepassados nasceu nesse município. Agradeço a honra que me foi concedida em duas publicações vindas a lume no jornal “Alto Alentejo”, nas quais surjo como “líder” de um grupo de pessoas de Castelo de Vide, mas não a mereço. Se manifestei o meu repúdio público pelas intenções do pároco viti-castrense e de mais algumas pessoas em vender a abandonada igreja de São Miguel (situada na Serra que já teve o nome do Comandante das Milícias Celestes e principal defensor da Igreja e do povo de Israel), limitei-me a fazer eco de uma notícia criada e difundida pelo Grupo de Amigos de Castelo de Vide no jornal que publica. Partilhei a notícia no “facebook” e comentei-a, dando o meu apoio aos castelo-videnses, estupefactos perante um incompreensível e pouco claro ataque ao seu património medieval. É certo que difundi a notícia e pus os meus fracos préstimos à disposição dos defensores do património local, mas nada fiz que outros não tivessem feito. O seu a seu dono…
            Há quem defenda publicamente que “as igrejas de Castelo de Vide não fazem falta”. Permito-me discordar. Fazem tanta falta quanto as muralhas de várias épocas que envolvem a vila, quanto o castelo que lhe deu nome, quanto as antas e outros vestígios arqueológicos que povoam o município, quanto o pelourinho que se ergue em frente aos Paços do Concelho, quanto muitas tradições seculares que dão identidade à urbe. Diria mesmo que, dado o seu estatuto, fazem até mais falta. Com o que digo, não estou a estabelecer uma hierarquia, mas apenas a dizer que uma estratégia pastoral imaginativa, dialogante e aberta já lhes teria dado utilidade comunitária além do seu valor patrimonial, pois se não há cultura sem culto, também não há culto sem cultura.
            A igreja de São Miguel não está arruinada, como tem sido dito. Está apenas abandonada porque a abandonaram há várias dezenas de anos, entregando-a à sua sorte e às forças da natureza. Aconteceu o mesmo a outras ermidas castelo-videnses, o que se lamenta. Desde que lhe retiraram as imagens aí veneradas, não mais foi reparada, limpa ou valorizada. Mas não é uma ruína. Não será muito difícil repará-la e dar-lhe nova vida, associando-a talvez à ermida de Nossa Senhora da Penha, sua vizinha, que não tem espaço para lá se celebrar a eucaristia, nem no dia da festa, ou instalando aí um agrupamento de escuteiros ou… (os castelo-videnses saberão – e parece que a edilidade já está a dar bons passos no sentido de não se apagar esse património). Essa igreja, já existente no século XV, era local de encontro dos cristãos-novos na centúria de quinhentos, tendo assim um valor memorial inalienável. Com potencial arqueológico importante, ninguém nos garante que por debaixo da sua cal não haja surpresas. Não deve ser vista, todavia, como algo que se possa separar da sua envolvente, tanto próxima – onde avulta um entorno prodigioso do ponto de vista natural e paisagístico – quanto alargada. Pergunto: não seria possível criar uma rota do sagrado que envolvesse todos estes edifícios ainda de pé e mesmo aqueles de que já só sobram ruínas? Ou será melhor defender o que defendiam alguns cidadãos de Guimarães no século XIX, ao quererem demolir o castelo da cidade porque o “progresso” seria levantar ali um “bairro operário”?
            É certo que em Castelo de Vide e no seu concelho nunca existiram igrejas dedicadas a São Martinho ou à Senhora da Saúde (como alguém escreveu), mas o valor memorial e patrimonial de igrejas e capelas como as que existem no concelho alentejano é algo que não pode ser desperdiçado seja por quem for. Desde uma igreja de Santiago (que investigadores internacionais já identificaram como uma antiga mesquita) à do Salvador do Mundo (anterior à nacionalidade e ligada ao cristianismo moçárabe), passando pelo Senhor do Bonfim (com um admirável conjunto de pinturas murais), ao Bom Jesus e à Senhora do Carmo (com retábulos que urge estudar, restaurar e divulgar, no âmbito da comunidade de artistas que existiu em Castelo de Vide nos séculos XVII e XVIII), a Santo Amaro (uma admirável igreja barroca!), às medievais São Roque e Santo Amador e a muitas outras, há um imenso conjunto de oportunidades a explorar – no âmbito de uma religiosidade aberta, de um turismo religioso e cultural e de uma estratégia inteligente de desenvolvimento local. É um erro pensar que as igrejas só merecem estar de pé enquanto lá se celebrar missa todos os domingos. Não foram construídas para isso. A maior parte delas, desde o dia da sua inauguração, só teve eucaristia uma vez por ano (ou no dia da sua festa ou no dia do sufrágio de quem lá estava enterrado, em geral os seus fundadores). A sua manutenção era assegurada por um ermitão, que aí vivia de graça e em troca de habitação gratuita tinha de assegurar a abertura de portas aos fiéis. Hoje em dia serão usadas de outro modo, com fins distintos. Não serão todavia menos dignos.
            Dar valor a uma igreja, ainda que pequena e humilde, mas histórica, é respeitar um passado que nos mantém de pé, pois faz parte das nossas raízes. Não há futuro sem passado. É muito urgente dar valor a este e a outros patrimónios, sobretudo num tempo em que motivações espúrias querem “purificar” a nossa memória, derrubando e vandalizando estátuas e pessoas, levando-nos para a barbárie. Acredito que os negócios sejam sedutores, que a pressa de resolver situações seja má conselheira, que a imaginação nem sempre seja abundante, que pressões várias – nem sempre legítimas – façam esquecer o dever maior. Não é por acaso que o Direito Canónico afirma só ser válida a alienação “de ex-votos oferecidos à Igreja, ou de coisas preciosas em razão da arte ou da história” com licença expressa da Santa Sé, permitindo todavia que, além do culto, da piedade e da religião, o bispo diocesano permita nas igrejas “outros actos ou usos, que não sejam contrários à santidade do lugar”. Mesmo que as circunstâncias tenham levado à perda da bênção do local, é sempre possível dar-lhes um uso digno que respeite a sua integridade memorial, arquitectónica e artística. Há exemplos vários disso mesmo no Alentejo e no país, alguns bem perto. Não é preciso reinventar a roda…
            Um dos primeiros actos de São Francisco depois da sua conversão foi promover nos arredores de Assis a reparação da igreja de São Damião, que ameaçava ruína e estava abandonada. Para isso, vendeu tudo o que tinha e, segundo contam as suas biografias medievais, chegou a andar pela sua terra a pedir pedras para a reconstrução, prometendo recompensas divinas. Nem todos podemos chegar ao exemplo maior dos santos, mas – como me disse um dia, era eu adolescente, o saudoso Cónego Justo, membro do Cabido da Sé de Portalegre – “se nem todos conseguimos ser santos, todos temos a obrigação de ser nobres e honrados”. Haja nobreza de carácter, honra e humildade e a situação das igrejas de Castelo de Vide será resolvida a pouco e pouco pelos castelo-videnses, pelas suas autoridades civis e por quem dirige a sua paróquia. Não me passa pela cabeça que venham a ter uma atitude menos digna. O Paráclito os espicaçará.

RUY VENTURA
(artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", de 17/6/2020)




segunda-feira, 20 de abril de 2020

IGREJA DE SANTA MARIA DA DEVESA
Castelo de Vide

Ruy Ventura
(texto e foto)


Com provável origem moçárabe, a primeira igreja de Castelo de Vide a assumir a função de matriz foi a do Rei Salvador do Mundo, situada nos arredores da vila. Assim o diz uma tradição muito antiga, a qual afirma que a segunda foi a de Santiago Maior, talvez resultante da adaptação ao culto cristão de uma mesquita. Anterior a Santa Maria da Devesa terá sido ainda outra igreja medieval, existente no castelo e antepassada da actual ermida de Nossa Senhora da Alegria (a padroeira do burgo).
O templo imponente que hoje se eleva – um dos mais amplos de todo o Alentejo – resulta da reconstrução iniciada em 1789 e concluída já na segunda metade do século XIX, ocorrendo a abertura solene a 28 de Setembro de 1873. A primitiva ermida dedicada à Virgem, edificada na devesa ou rossio extramuros da vila, terá nascido na segunda metade do século XIII. Em 1311, aí instituíram Lourenço Pires e Domingas Joanes uma capela, à qual deixaram os seus bens, entregues à administração dos “confrades da albergaria de Santa Maria”. Entre essa data e 1321 terá sido elevada ao estatuto de paróquia, juntando-se a outras quatro (Santiago, Salvador, São Pedro e São Lourenço).
Na sequência dessa promoção, o pequeno edifício terá recebido uma ampliação gótica. Se a igreja isolada que podemos ver num desenho de Duarte d’ Armas datado de 1509-1510 é, de facto, a matriz de Castelo de Vide, então na primeira década do XVI já teria essas características, exibindo uma estrutura típica do gótico depurado, adoptado por todo o país, nomeadamente nas igrejas paroquiais. Se as três naves, com a central mais elevada, evidenciam uma construção medieval, a capela-mor quadrangular, com contrafortes a meio dos panos murários, ladeada por uma torre sineira, denuncia uma intervenção posterior, datável já do período manuelino, talvez ainda de finais do século XV. Nada de estranhar, sendo Santa Maria a cabeça de uma comenda da Ordem de Cristo.
Um desenho inédito anónimo, de execução não posterior aos primeiros anos do século XVIII, nem anterior a 1680, dá-nos uma imagem mais concreta da matriz. Nessa panorâmica de Castello da Vide, Santa Maria da Devesa é representada com destaque volumétrico no meio de um denso casario, tendo a rodeá-la, no entanto, um adro espaçoso. A sua aparência não era já aquela que Duarte d’Armas registou. A largura da fachada, com três janelões, uma janela mais pequena e um pórtico grandioso (que parece de volta perfeita), denuncia uma estrutura interna com três naves, coberta, todavia, por um telhado com duas águas. A sul da capela-mor, elevava-se uma sineira de grandes dimensões, edificada diagonalmente em relação à Casa da Câmara. Essa torre ocuparia, assim, um lugar hoje aberto, poucos metros a norte do sítio onde se ergue o pelourinho.
Embora com dimensões menores do que o actual edifício, a primitiva matriz não se instalaria num espaço muito distinto daquele que agora ocupa a sua sucessora. Em 1758, o P.e João Aires Baptista fala-nos já de uma igreja integrada no Padroado Real, mas “aruinada, não pello terramoto do anno de 1755 mas por muito velha”. A paróquia estava então instalada na Colegiada do Espírito Santo, pois em 1749 o bispo de Portalegre, D. Fr. João de Azevedo, havia dado ordem para a sua demolição e reedificação. Pelos apontamentos desse pároco ficamos a saber que as suas três naves possuíam nove altares, aí estando instaladas seis confrarias.
O edifício desaparecido foi recebendo várias campanhas de obras. Regista-se, por exemplo, a intenção de substituir o retábulo-mor em pintura mural, considerado um “escandalo”. Para executá-lo, chegou a ser contratado em 1610 o marceneiro lisboeta Manuel Ribeiro, mas tal obra nunca chegou a fazer-se. Só em 1662 o pintor portalegrense Manuel de Faria celebraria escritura para a execução dessa peça retabular. Em 1678-1679, o pintor José de Carvalho, também de Portalegre, dourou o altar de Nossa Senhora do Rosário, onde se incluía uma Árvore de Jessé. Pela mesma data, o elvense Afonso Vaz foi encarregue de dourar o retábulo do Santíssimo Sacramento, tendo ainda a obrigação de pintar a abóbada, os frisos e o frontispício da capela-mor, bem com as suas grades. Não obstante estas intervenções artísticas, entre 1682 e 1684 Santa Maria da Devesa sofreu uma intervenção importante, ao ponto de o culto ter de passar para outra igreja. Talvez date dessa época a substituição do portal, modificado cerca de 1748, o qual ainda hoje subsiste como entrada principal do novo imóvel, ao qual foi adaptado, apesar das suas dimensões algo desajustadas em tão alta e larga fachada.
O edifício actual demorou 84 anos a concluir, se estabelecermos como data limite o ano da sua inauguração, 1873. A construção terminou em 1822, mas a ornamentação do interior demoraria mais algumas décadas. O projecto quase catedralício de Santa Maria da Devesa, ainda hoje anónimo, mostra uma gramática barroca que, a pouco e pouco, se foi adaptando nos pormenores ornamentais a novas estéticas, sem deixar uma atitude simplificadora, habitual nas traduções regionais de arquitecturas eruditas. Podemos assim encontrar elementos do Rococó a par de evidências neoclássicas, ombreando com outras que já denotam um certo romantismo, aquele que recuperou sem preconceitos apontamentos de estilos anteriores ao século XVIII. A organização do amplo espaço interior – em cruz latina, com capela-mor larga e pouco funda, transepto, cruzeiro coberto por enorme cúpula, nave com vários tramos divididos por pilastras, entre as quais existem arcos encimados por tribunas, e coro a toda a largura, sustentado por uma abóbada muito abatida – lembra alguns edifícios lisboetas das eras pombalina e pós-pombalina, v.g., a basílica do Sagrado Coração de Jesus, à Estrela, ou a igreja de São Domingos, traçada por Manuel Caetano de Sousa.  
Povo e elites, paróquia, confrarias, município e até o Estado suportaram os enormes custos da edificação da hodierna igreja. Construção levantada de raiz, não deixou ela de aproveitar subsistências da antiga matriz. Tal reciclagem correspondeu não só à necessidade racionalizar os recursos disponíveis, mas também a uma atitude eclética, vigente nos tempos em que os trabalhos se iniciaram e desenvolveram, que aceitou e promoveu a inclusão em edifícios modernos  de elementos mais antigos.
Na actual estrutura vislumbram-se, pois, várias peças arquitectónicas e ornamentais mais antigas, como um arco maneirista na entrada do baptistério ou, talvez, uma escadaria manuelina numa das torres sineiras. O retábulo-mor, com ornamentação neomaneirista, é das peças mais recentes, tendo sido executado pouco depois de 1867, a partir de um risco do arquitecto lisboeta Manuel Afonso Rodrigues Pita. No transepto e na nave encontramos, contudo, obras anteriores, destacando-se o retábulo de Nossa Senhora do Rosário (1771) e o de São Pedro (hoje de São José, saído da mesma mão), bem como o do Senhor dos Passos ou das Almas (talvez de inícios do século XIX, mas modificado em 1885). O retábulo do Santíssimo Sacramento, em mármores, data de 1829, não devendo ser muito posterior aquele que se eleva no lado oposto, dedicado a Nossa Senhora do Carmo. Bastante mais recente é o de Nossa Senhora de Fátima, o qual, numa estética revivalista, imitou em 1954 o que lhe está fronteiro. As paredes laterais da capela-mor acolhem, por seu turno, um conjunto de pinturas figurativas, consequência das grandes obras promovidas na igreja entre 1945 e 1950. Tirando o Regresso do Filho Pródigo e o Repouso na Fuga para o Egipto, saídos do pincel anacrónico de Luísa Salema Cordeiro e Alice Gordo Barata, respectivamente, todas as restantes foram executadas entre 1952 e 1953 por Adolfo Bugalho, mostrando uma estética menos apegada ao passado. São especialmente interessantes aquelas que ilustram o versículo 2 do Salmo 42 (41) e o versículo 17 do capítulo 19 do Evangelho segundo São Mateus.
Esta igreja acolhe uma numerosa colecção de obras de arte sagrada, parte delas integradas na reserva visitável denominada Museu de Arte Sacra Cón.º Albano Vaz Pinto. Com peças que vão dos finais da Idade Média ao século XX, aí se salientam várias esculturas pétreas: Santa Maria da Devesa (século XV, acaso da órbita do escultor coimbrão João Afonso); uma Trindade quatrocentista; um Santiago Peregrino da mesma época; um Santo não identificado, do mesmo autor que esculpiu um Santo André do Museu Nacional de Arte Antiga; um mutilado São Lourenço (talvez de João de Ruão); um decapitado São Pedro e um São Roque, ambos já de Quinhentos. Entre as obras lígneas, merecem referência a barroca Sacra Parentela, uma Nossa Senhora do Loreto (saída no primeiro quartel do século XVIII das mãos dos calipolenses Francisco Freire e Manuel de Oliveira), além da série de Santos da Ordem Terceira de São Francisco, cujas cabeças denotam a intervenção de muito boa oficina lisboeta da segunda metade de Setecentos.
           


Bibliografia fundamental:
DIAMANTINO SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide – Subsídios para o Estudo da Arqueologia Medieval, Lisboa, Assembleia Distrital de Portalegre, 1979; DIAMANTINO SANCHES TRINDADE, Castelo de Vide – Arquitectura Religiosa, I, 2.ª ed., Lisboa, Câmara Municipal de Castelo de Vide, 1989; PEDRO CID, As Fortificações Medievais de Castelo de Vide, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, [2005]; ROSÁRIO SALEMA DE CARVALHO, Igreja de Santa Maria da Devesa, Matriz de Castelo de Vide, [Castelo de Vide], Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2006; CÉSAR VIDEIRA, Memoria Historica de Muito Notavel Villa de Castello de Vide, 3.ª ed., Lisboa, Edições Colibri-Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, 2008; PATRÍCIA ALEXANDRA RODRIGUES MONTEIRO, A Pintura Mural no Norte Alentejo (Séculos XVI a XVIII: Núcleos Temáticos da Serra de S. Mamede, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2012 (dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa); RUY VENTURA, A Vide e o seu Castelo – Notas sobre a Toponímia, a História e a Heráldica de Castelo de Vide, Évora-Castelo de Vide, Editora Licorne – Grupo de Amigos de Castelo de Vide, [2016].


segunda-feira, 10 de junho de 2019




CARTA ABERTA A JOÃO MIGUEL TAVARES

Caro João Miguel,
Tomo a liberdade de tratar-te por tu. Somos afinal conterrâneos, apesar de não nos conhecermos. A nossa idade é muito próxima. Imagino que, como eu, tenhas nascido no velho Hospital da Misericórdia, em pleno Rossio portalegrense; tu, em Setembro, eu dois meses depois. Escrevo-te depois de ter escutado pela televisão, comovido, a tua intervenção como responsável pelas comemorações do Dia de Portugal. Não poderia deixar de fazê-lo ao ouvir-te evocar o teu avô que, ao fundo da Rua de Elvas, dava sopa àqueles que dela precisavam, ao sentir o significado daquela casa ao cimo da Avenida Frei Amador Arrais que foi e é a tua e, sobretudo, ao ter contido com alguma dificuldade as lágrimas quando te ouvi mencionar o destino de tantos portalegrenses que, para cumprirem o seu destino, se viram obrigados a deixar o seu concelho.
Poderia ficar por aqui e agradecer-te, com a maior profundidade. Mas cortaria metade da verdade. Poderia dizer que o meu destino foi igual ao teu e ao de tantos da nossa terra. Mas não contaria a história toda, porque é mentira.
Se bem conheces o nosso concelho, e acredito que sim, sabes que o destino daqueles que nasceram e cresceram com a democracia não foi igual para todos. Os filhos do funcionalismo público e das elites locais, seja lá isso o que for, nascidos e criados na cidade, nunca tiveram o mesmo tratamento que os filhos dos operários, das costureiras e dos pequenos agricultores que tiveram como destino crescer nas aldeias da serra e dos arredores. Os sacrifícios, acredito, seriam semelhantes em cada família; mas enquanto os sacrifícios da classe média citadina podiam oferecer aos seus a universidade, fora de Portalegre, quem vinha de outros meios era obrigado a contentar-se com os cursos ministrados pelas escolas do Instituto Politécnico de Portalegre, mesmo que tivesse notas e capacidades para marchar até outras paragens. Como dizia uma grada senhora, era uma espécie de prémio de consolação.
Estou grato à democracia por ter criado instituições de ensino superior em pequenas cidades de província; se assim não fosse, ter-me-ia ficado pelo ensino secundário e ver-me-ia transformado num apagado empregado bancário ou de secretaria, talvez num contabilista, mesmo que tivesse asas para outros voos. Assim sendo, filho de um operário da Robinson e de uma costureira, vindo das serranias das Carreiras, não tirei (é certo) o curso de História que sempre ambicionei ou o de Geografia e Planeamento Regional para o qual tinha altas classificações, apesar de ter sido um dos agraciados com o Prémio Francisco Fino para os melhores alunos do secundário do nosso município, mas desenrasquei-me com uma licenciatura em ensino de Português e Francês, tirada na nossa cidade, porque para ela ainda ia havendo dinheiro, sabe Deus com que esforço e privações, embora para mais fosse impossível. Sem cunhas e sem parentes que me abrissem a porta fora de Portalegre, tive de me contentar com o que havia e dar o meu melhor, sabendo bem demais, mas tentando esquecer, que partia para a meta da vida numa posição diferente da de outros meus conterrâneos...
Foi no final dessa licenciatura que comecei a tomar consciência de outra realidade. Aluno no último ano do nosso saudoso Carlos Garcia de Castro, poeta grande cujo mérito, refugiado na interioridade, nunca foi reconhecido como deveria ter sido pelo "meio literário", foi ele quem me abriu os olhos para o que Portalegre era há 25 anos e, infelizmente, continua a ser. Nunca esquecerei a sua frase: "Concorra para sair daqui. Nesta terra nunca lhe perdoarão ser filho de um operário e de uma costureira." Concorri, mas passados anos caí na tentação de aceitar um convite para regressar. Durante três anos, fui professor na instituição de Ensino Superior onde recebera a minha formação inicial. Seduzido para a política por estratégias ardilosas, estive quase a entrar para o partido que agora nos governa. Acontece que, no momento decisivo, me deu para ser independente e recusei atravessar para esse lado. Paguei caro. Não tardou muito que deixasse de haver lugar para mim e, apesar de ter o meu mestrado concluído e iniciado o doutoramento, fui preterido. Eu tive de regressar ao exílio e quem ficou, apenas com a licenciatura (!), teve o lugar garantido durante vários anos, talvez por ser filha de um ex-autarca do Partido da mão fechada. Só então percebi tudo quanto Carlos Garcia de Castro me dissera. Em Portalegre, cópia em miniatura do Portugal que abomina o mérito e tu hoje denunciaste com a firmeza que te conhecemos, não se perdoa a falta de currículo familiar e muito menos pensarmos pela nossa cabeça, sobretudo se isso fizer sombra a alguém bem instalado ou puser em causa o seu pequeno poder ou a sua mediocridade.
Sou hoje um portalegrense exilado que bem gostaria de curar-se dessa doença que se chama Portalegre. Teria uma vida muito mais tranquila. Não nego: o exílio tem-me trazido muitos momentos felizes, algumas alegrias que nunca atingiria se tivesse ficado pelo Corro lagóia. Mas, confesso-te, são alegrias amargas que, a cada momento, me recordam essa condição de migrante por vontade alheia. A minha árvore tem raízes e custa-me saber que os seus frutos são colhidos por outros porque da minha terra existe uma incessante e nefasta ventania que lhe vergou o tronco e fez crescer a copa noutra direcção.
Sabes, João, ao ouvir o teu discurso de hoje - que só não me fez verter lágrimas porque, caramba!, um homem não chora - vi pela televisão os meus pais aplaudindo-te. Também devem ter sentido fundamente as tuas palavras, lembrando o seu filho único que a várias centenas de quilómetros as ouvia. Portugal ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia Raul Brandão a propósito de Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os inteligentes, mas (para nossa desgraça colectiva) os mais espertos.
Bem hajas pelas palavras que tiveste a coragem de dizer. Espero que a voragem deste país não as apague tão depressa. Um abraço firme e comovido do teu conterrâneo

quinta-feira, 2 de maio de 2019


… E A MEMÓRIA DA CIDADE QUE SE LIXE

Lê-se na página da sucursal portalegrense do Partido Socialista que, em Assembleia Municipal, fez aprovar – apenas com a abstenção do PSD – a atribuição do nome de Mário Soares à “popularmente conhecida rotunda do navio”. Parece que esta decisão já mereceu a concordância da comissão municipal de toponímia. Tanto quanto vim a saber, a sucursal concelhia do Partido Comunista Português, para não ficar atrás e cobrando, quiçá, o voto favorável dos seus eleitos, propôs ou vai propor que outra rotunda ou avenida ou rua lagóia venha a ter o nome de Álvaro Cunhal. (Se tal se concretizar, o que não duvido, teremos uma verdadeira geringonça portalegrense – só faltando o beco Miguel Portas ou João Semedo ou Francisco Louçã ou Catarina Martins ou Fernando Rosas para a trempe ficar completa...)
Ainda correu pela cidade e arredores que a ideia inicial dos comunistas era rasurar a designação “Avenida do Bonfim”, nascida do santuário homónimo onde tem início, tão querido das gentes da cidade onde nasci. Mas parece que a coisa ficou pelo caminho, talvez por saberem que o regulamento municipal impede (ou desaconselha) a substituição de nomes históricos oficialmente consagrados – ou, mais provavelmente, por se lembrarem que essa artéria passaria a desembocar na rotunda agora soarista, o que provocaria não poucos engulhos aos dois adversários políticos, caso cá estivessem, vendo-se assim de braço dado, quase aos beijinhos, na pública rotunda. Mas adiante. Confesso que gostaria de ouvir, vinda das profundas, a voz cava do nunca desmentido devoto das práticas e doutrinas soviéticas dizendo ao meu ouvido: “Olhe que não, olhe que não…” A mais de duzentos quilómetros de Portalegre tenho todavia informações seguras de que tal má nova é mesmo certa – verdade, verdadinha. E lamento. Funda e fundadamente lamento!
Não está em causa o mérito ou demérito das figuras que, agora, em vésperas de eleições, um punhado de políticos do burgo quer reverenciar à custa da identidade da urbe, nem sequer o facto de tais personalidades pouco ou nada terem que ver com a cidade. Tiveram qualidades e defeitos como toda a gente. Nalgumas situações contribuíram para o bem do povo, noutras prejudicaram-no e noutras foram impedidos (graças a Deus!) de prejudicá-lo. Estão em causa os critérios e os jogos políticos e sociais que movem a exaltação de Cunhal e Soares e apagam, ao mesmo tempo, Fernando Pessoa (sim, esteve em Portalegre!), Humberto Delgado, Salgueiro Maia, Matilde Rosa Araújo (sim, viveu na cidade!), Ramalho Eanes, Amaro da Costa ou, até, para falar nos portalegrenses de nascimento ou de coração, Soror Isabel do Menino Jesus, Eusébio Leão, Joaquim Miranda da Silva, Pe. José Patrão, Carlos Garcia de Castro ou Carrilho da Graça... Está sobretudo em causa o modo como se desrespeita e/ou menospreza com estas e outras decisões a memória urbana e histórica de Portalegre, expressa no nome legítimo dos seus lugares, criado pelo povo que neles viveu ao longo de séculos. (Seria indigno, pergunto, o nome ancestral do local, “Moinho de Vento”? Causaria brotoeja uma referência à Fábricas das Sedas que aí existiu?)
Estudei com demora a toponímia da cidade e as motivações que a foram criando, alterando, rasurando ou apagando. Vem tudo num longo artigo intitulado “Toponímias de Portalegre: da Idade Média ao século XX”, publicado há uns anos no nº. 12 da “Ibn Maruán – Revista Cultural do Concelho de Marvão” (hoje a necessitar de reedição revista e aumentada). Sei bem o que valem as chamadas “comissões de toponímia”, como são nomeadas, o que as move, a sua competência e os regulamentos que fazem, desfazem e aplicam. Não esqueço a ligeireza do conhecimento que, salvo raras excepções, possuem da História e da memória colectiva – e o (des)respeito que têm por ela. Basta-me recordar muitas e muitas das suas incompreensíveis (ainda que bem intencionadas) decisões – valorizando gente com escasso valor e ostracizando os que deveras o tiveram. Chega-me relembrar pelo menos um dos seus pretéritos membros (entretanto falecido) que, além de ter inventado uma “Rua dos Aleatórios” na toponímia setecentista de Portalegre, defendia a eliminação de grande parte dos nomes antigos como coisa bolorenta e pouco civilizada… Já não me deixa, pois, boquiaberto a forma leviana e por vezes caricata com que nomeiam as novas vias de circulação. Não me espanta, ainda, que as mudanças toponímicas continuem a ser uma triste realidade, mesmo que a população portalegrense não as queira – pois nunca sobre tal assunto foi, é ou será consultada. Pelos vistos a salvaguarda, valorização e divulgação deste património imaterial ainda não chegou à terra onde nasci (nem a boa parte do nosso país, diga-se em abono da verdade). Com desgosto o escrevo.
Dir-me-ão que as tentativas de rasura não são de agora, que as homenagens interesseiras são já velhas. Têm toda a razão. Começaram, ainda que timidamente, no século XIX, com o regime liberal. O nome das praças, das alamedas, das ruas, das travessas e até dos becos passou a ser campo fértil de todas as propagandas, de todos os interesses e de todas as vaidades. Houve é certo boas intenções, embora com maus resultados. Graças a Deus nunca tivemos em Portalegre autarcas que durante o seu mandato impusessem o seu nome a ruas e edifícios, como sucedeu noutras terras do Alto Alentejo e do Entre Douro e Minho. Mas o fluído canino das várias tendências políticas e de muitas vaidadezinhas individuais ou de grupo foi manchando não poucos nomes ancestrais da nossa cidade e de quase todas as terras do nosso país.
Ironia das ironias, o povo (que nunca foi tido nem achado nessas artimanhas e sobrancerias) esteve-se sempre lixando para os nomes novos, a não ser quando atribuídos a espaços urbanizados de novo – e ainda assim nem sempre. Passados muitos decénios (por vezes mais de um século) sobre essas alterações decretadas pelo sectarismo político das vereações, continuou a usar os topónimos antigos. Os exemplos em Portalegre são eloquentes. A rua Alexandre Herculano continua a ser de Santo André, a 31 de Janeiro teima em ser dos Canastreiros, o parque Miguel Bombarda, a avenida George Robinson e a rua de Olivença nunca deixarão de ser Corredoura, a rua 5 de Outubro nunca abdicou de ser Direita, o largo 28 de Janeiro pertence ainda à Fonte Nova, a rua Mouzinho de Albuquerque apenas do Pirão é chamada, não esquecendo a Luiz Barahona que do Castelo nunca se livrará, a Cândido dos Reis que nunca esconderá o Cano, a Almeida Garrett que nos conduz ainda ao Mercado (embora ele já esteja noutras partes), a França Borges que persiste na sua referência ao Bargado, o largo Serpa Pinto que adoptou (demolida a igreja da Madalena aí existente) a boneca de uma fonte...
A lista poderia continuar, mas não vale a pena aborrecer os leitores. Convém todavia registar com irónico agrado as designações populares bem recentes que os sábios transeuntes vão já dando a outros lugares com urbanização contemporânea, ignorando com orgulhosa altivez o desrespeito de que são alvo – neste e noutros domínios – por uma boa parte dos seus representantes eleitos. Ou alguém tem dúvidas de que a agora chamada “Rotunda Mário Soares” continuará a ser para todos a tão simples “rotunda do navio”? Não tenho quaisquer dúvidas. Afinal, nestes e noutros achados, “o povo é quem mais ordena”. Por mais que isso provoque comichões nalguns que se têm como procuradores sobranceiros da população.

RUY VENTURA 
(Texto publicado a 2/5/2019 no jornal portalegrense "Alto Alentejo"; foto de RV.)

quarta-feira, 25 de julho de 2018



MILAGRE QUE FEZ
Ex-voto do Senhor dos Aflitos reaparece
mais de 40 anos depois de “perdido”


         Nunca estaremos suficientemente gratos aos coleccionadores de arte sacra do nosso país. Pensemos o que pensarmos sobre o seu amor às peças que foram e vão juntando ao longo de uma vida, quantas vezes com sacrifício pessoal, temos de reconhecer que graças à sua actividade se salvaram e salvam muitas obras da nossa cultura. Essa gratidão deve ser ainda maior quando, em determinado momento da sua vida, se sentiram na obrigação de devolver as peças adquiridas ao usufruto público, cedendo-as ou vendendo-as a museus ou a outras instituições que, de algum modo, continuaram e/ou continuam a sua devoção àqueles objectos, onde as mãos dos criadores humanos tentaram expressar a sua interpretação da palavra de Deus, da religiosidade humana ou das figuras e narrativas que, ao longo de séculos, edificaram a história religiosa de Portugal e de outras paragens. Nunca é demais lembrar as palavras do Papa Francisco que, num livro intitulado “La Mia Idea di Arte” (infelizmente indisponível em português), sublinha o papel evangelizador da pintura, da escultura, da arquitectura, da música e de outras artes, ao serem, mais do que muitos discursos teológicos, vias eloquentes de interpretação da revelação apostólica. Essa sua capacidade não se esbate nem desaparece quando as peças, levadas por circunstâncias diversas, saem dos edifícios religiosos. Tornam-se antes vias especiais que continuam a levar, subtilmente, mesmo aos descrentes, a mensagem divina.
         Não podemos esquecer o quanto devemos agradecer aos coleccionadores “de santos”. Sem eles, muito património ter-se-ia perdido, levado pela ignorância e pela arrogância dos homens (clérigos e leigos), pela ambição e pela estupidez que moveu tantas épocas da nossa História, pelas “modas” que, frequentemente, lançaram para a poeira das arrecadações das igrejas esculturas, pinturas, livros, alfaias e outros objectos valiosíssimos e belíssimos, só porque não correspondiam aos padrões “estéticos” daqueles que eram os seus fiéis depositários. Dizia-me há anos um importante responsável eclesiástico do nosso país que, “muitas vezes, até os ladrões valorizam mais as peças que a Igreja possui do que muitos dos seus detentores, cuja única preocupação é vender ou atirar para o lixo o que parece velho e inadequado à sua miopia ou mandar repintar nos santeiros de Braga e de Fátima as peças que os nossos antepassados nos legaram…” Acrescentava: “Pelo menos os ladrões e os coleccionadores dão valor ao que temos…”
         Na altura, as suas palavras deixaram-me sem resposta e puseram-me a pensar. Embora reconhecendo as várias excepções que há pelo país, cujo mérito nunca será demais realçar (sobretudo perante os que agem de outro modo, vandalizando o que no fundo não lhes pertence), vi-me obrigado a concordar com esse prelado. E, cá entre nós, o tempo tem-lhe dado razão.
         Homens como José Régio, Ruy Sequeira, Ernesto Vilhena e alguns mais cumpriram um papel importantíssimo na nossa cultura. Podemos discutir os seus métodos e o seu sentido de oportunidade, o cuidado que nem sempre tiveram no registo da proveniência das obras de arte que foram comprando, mas temos de nos vergar à lógica da sua actuação e à maneira como, depois, devolveram o património ao público mais ou menos crente. Se nem todas as instituições a quem legaram ou venderam as suas colecções se mostram dignas desse património recebido, é outra conversa que não cabe neste artigo. Pensemos nas que têm trabalhado de outro modo, dando bons exemplos, como o Museu Nacional de Arte Antiga, a Casa-Museu José Régio, a Casa-Museu Padre Belo, o Museu da Consolata em Fátima ou a Fundação Robinson.

*

         Vem esta introdução a propósito de uma peça portalegrense recentemente redescoberta pelo autor deste artigo. Trata-se de um dos ex-votos pertencentes ao espólio do Santuário do Senhor Jesus dos Aflitos, situado na paróquia de São Domingos dos Fortios, no concelho de Portalegre.
         Local de culto nascido por volta de 1713 à sombra de uma pequena cruz de madeira, onde foi pintada a figura de Cristo paciente e sofredor, é ainda hoje um eixo da religiosidade do Alto Alentejo, movendo devotos e peregrinos, sobretudo no dia da sua festa, actualmente celebrada no início de Maio. O trabalho meticuloso e incansável do Cónego Bonifácio Bernardo tem permitido aos interessados um conhecimento pormenorizado da sua história, cuja leitura enriquece o nosso entendimento das múltiplas dimensões da vida dessa parte de Portugal nos últimos trezentos anos. É imprescindível ler o seu livro “Senhor Jesus dos Aflitos, Origens – 1713-1845” (Edições Colibri, 2000), sendo ainda muito importante consultar outro volume em que editou um parte da documentação do santuário; prevê-se para breve um terceiro – e com impaciência o aguardamos.
         Entre o património dessa igreja, situada numa herdade, entre sobreiros, avulta a sua colecção de ex-votos, pequenos quadros gratulatórios oferecidos ao longo de séculos pelos devotos, manifestando e dando graças pelos prodígios que viveram por intercessão do Senhor. O conjunto não tem a dimensão dos que se podem admirar no Senhor Jesus da Piedade (Elvas), na Senhora do Carmo (Azaruja, Évora) ou na Senhora d’ Aires (Viana do Alentejo), mas ultrapassando a meia centena são um importante testemunho artístico, antropológico, sociológico e religioso da devoção secular. Podem hoje ser admirados por quem se disponha a folhear o catálogo da exposição itinerante “Imagens de Fé”, promovida pela Diocese de Portalegre – Castelo Branco; o conjunto portalegrense foi, aliás, o motor dessa mostra. Se a exposição não se preocupou com o enquadramento histórico das peças (o que se lamenta), tal não diminui de modo algum o seu valor e oportunidade.
         Desde há algumas décadas que se sabia, contudo, que faltava à colecção dos Aflitos um dos seus mais interessantes ex-votos, ainda do século XVIII. Observado e registado pela investigadora Maria Tavares Transmontano, que copiou e publicou a sua inscrição na sua “Monografia de Portalegre” (1997), terá levado descaminho entre 1965 e 1975. Era dado como perdido, sem se saber sequer se o desaparecimento seria devido a roubo ou a venda indevida. Nem uma foto ficara dele…
         Há poucos dias, folheando o volumoso catálogo intitulado “Christus”, editado no Porto pela Irmandade dos Clérigos como veículo de divulgação da colecção de imagens de Cristo que agora aí se expõem, após doação da colecção do Dr. António Miranda, deparei-me na página 171 com o ex-voto desaparecido do Santuário do Senhor dos Aflitos. Calcularão o que sentiu este investigador e defensor do património religioso da sua terra e de outras terras…
         Registado com o número de inventário ICP 1576, tem 24,6 cm de altura por 39,4 de largura. É uma pintura a óleo sobre madeira, datada de 1777, com a seguinte inscrição (sou fiel à ortografia original): “Milagre que fes o Senhore dos Afelitos a Francico Antonio que foi cazeiro na erdade do Alcade que sendo acometido por hum lobo deramado este ce lhe lancou aos peitos de que resultou o bradar pelo Senhore dos Aflitos imediatamente o dito lobo se retirou ficando o dito devoto sem nen huma lezaõ foi feito este milagre no anno de 1777”. A mão, popular, que executou esta obra foi também autora de outras pinturas existentes no Santuário, tendo inclusive repintado os ex-votos mais antigos.
         Impõem-se, agora, todas as necessárias diligências para que o seu volte ao seu dono e o “prodígio” se complete. A Paróquia dos Fortios e a Diocese não deixarão morrer decerto o assunto. Sabemos agora onde está e quem lá o depositou. Só não sabemos como chegou às mãos do coleccionador…
         Tantos anos depois, bem podem os portalegrenses dizer como escreviam os antigos autores dessas pinturinhas: “Milagre que fez o Senhor dos Aflitos…”


RUY VENTURA
(Artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", nº. 584, de 25 de Julho/2018.)

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