quarta-feira, 18 de abril de 2007


INVENTÁRIO


Carreiras
[primeira versão]

Tudo poderia ser dito – excepto, talvez, a alegria.
Tanto tempo depois, a estrada continua por terminar. A árvore parece mais esguia (cortaram-lhe há pouco quase um terço da copa).
O automóvel dá, no entanto, a mesma volta – trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia.
De Lisboa até aqui são duzentos e trinta quilómetros, a que metade de um corpo regressa permanentemente, como se fora à voz dos sinos (embalando os mortos), à altura das pedras, como se desenhassem um fim de tarde.
A criança desce até às profundezas da terra, encontrando, na súbita angústia de um pulover molhado, o caldo de farinha – situado, ainda hoje, no número cinco da rua da Calçadinha.



Carreiras
[segunda versão]

As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga.
Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia.



Calçadinha, nº 5 (1)

Haverá sempre alguém acenando para a mesa. Um garfo – ou somente um guardanapo – traduzindo para a mesa o sabor da terra.
È preciso, no entanto, entrar como se a noite fosse um sótão que há muito desapareceu.
A rua – ela própria – não mais retomou o cheiro de há mais de vinte anos: a porta comunicava com a cozinha, mesmo ao cimo das escadas, sob a telha de vidro; a lâmpada pendia da madre. Havia sempre alguém acenando para a mesa. Do lado de fora, pelo postigo. Apenas de dentro, de tantas coisas – o garfo, a navalha escondida por detrás da lareira, o copo de água voltado sobre um corpo que parte.
Sem habitantes, a casa regressou, talvez a três quilómetros de distância. Uma janela ilumina o quarto, embora os passos sejam os mesmos.
Como a água, atravessando de memória o forno, o horizonte. Ou, em silêncio, alguns animais. A escritura, perdida na mudança.



Calçadinha, nº 5 (2)
- para meu avô, Joaquim Camejo Biscainho

Quanto lhe custariam os amendoins comprados na taberna da aldeia? Retirados um a um do pequeno saco de plástico, ao mesmo tempo que o tilintar das moedas sobre o balcão e as vozes na tarde iam acompanhando as cartas de jogar, os vinténs de cobre cruzando o espaço, buscando no jogo a distância entre o sabor do vinho e o preço, verdadeiro, das ruas em pleno domingo. Quanto lhe custariam a idade e próprio sorriso (tão longínquo quanto os olhares dentro do retrato, a caixa de pedreiro distante na escuridão, como uma navalha dentro perdida dentro do bolso)? Entre a cama e a lembrança das pequenas coisas (apenas visíveis na sombra dalgum olhar molhado), quanto lhe custariam o miar do gato a adormecer na lareira, as castanhas comidas como luzes, a bicicleta – substantivo próprio à espera de um lugar dentro da geografia – ?
A memória faz a sua selecção, não consentindo sequer em mostrar-nos os seus sinais de angústia e de morte. Apenas alguns minutos – e o mundo circula como um automóvel, silhueta estranha que vamos decifrando em torno da comoção e do cansaço.
Ao fim e ao cabo, entre o deve e o haver dos sentimentos, as perguntas subsistem. Das respostas, apenas vão aparecendo páginas dispersas no inventário dos sentidos – de regresso à claridade do horizonte.



Fonte Nova, nº 8 (1)
- para a D. Maria José Soares

Ao fundo da rampa (onde outrora fora uma latada) havia uma construção de madeira e folha de zinco. Na varanda, permaneceram, durante dezoito anos, duas barricas com água da Fonte Nova e, uma vez por ano, com algumas arrobas de azeitona. O tanque tinha um odor diferente de tudo quanto o rodeava – guardava um pouco de nós nas suas águas sem movimento.
De tempos a tempos, era preciso gatear a cancela com pregos sem serventia ou com arame retirado a algum fardo de palha. Delimitava um espaço que não deveríamos ultrapassar, embora (sobre o muro) fosse fácil dirigir o olhar até uma casa rasteira, onde apenas a porta comunicava luz ao interior da cozinha.
(Foram precisos alguns anos para que entendesse a disposição deste corpo – desvanecendo-se.)
Junto à salsicharia, a avenida deixava de existir. A cor desaparecera há muito. A música da varanda partia até debaixo da tangerineira. No inverno, uma parte da rua escurecia – subitamente.
Certo dia, foi preciso entregar a chave – como se o carteiro passasse a recusar os degraus que vão até ao primeiro andar. A porta de madeira, posta na horizontal, deixou de ser suficiente para nos resguardar da chuva. Em compensação, passaram a existir folhas de jornal entre o vidro e a grade – para que o sol ficasse menos intenso.



Fonte Nova, nº 8 (2)

Mesmo antes, não era decerto o melhor lugar para atravessar até ao outro lado do edifício. Um tanque, talvez uma acácia. Duas ou três sacadas numa das últimas madrugadas de dezembro.
Alguém reduz os alicerces da casa. Lembro o jardim, de oliveira a oliveira, a escada de cimento, o braço – segurando -, a melancolia.
(Decidi guardar o envelope na última gaveta da cómoda. Ponho os nossos nomes entre os objectos cujo significado nos absorve. É difícil determinar as ressonâncias quando abandonamos, pelas dez da manhã, uma cidade que cresce.)
Nunca tive realmente um quintal. Demasiado perto ou demasiado longe para que a possamos alcançar, a imagem cresce de quinze em quinze dias, ainda que o passeio seja apenas o início de um nascimento.
A porta abre-se, como se fosse a linha do horizonte. Entre duas noites de chuva, tudo está em tudo, tudo nos pertence.



Avenida

Partiu para sempre – o peso sobre o assento, até Castelo de Vide, parando no Carvalhal.
Subia com pressa a rua do Canto, repetindo, sem parar, o preço dos frutos, o calor do pão, logo pela manhã.
A bicicleta seguia – completamente só – apenas com o equilíbrio retirado ao vento ou à figueira (de que hoje resta somente um rasgo sobre o muro).
São assim as estações. Mesmo em julho, as nuvens guardam-nos de um sol demasiado intenso.



Cemitério

O casaco, a camisa, uma gravata de duas cores – e esta agonia (espécie de contentamento), do outro lado do muro, para onde poucos olham.
O homem veste, pela última vez, um murmúrio, a inocência nos olhos, um lençol que se estende a todo o campo.
O hóspede abandona a casa – para sempre -, esquecendo até que fora recebido minutos depois de uma morte (uma porta entre muitas). Não mais reclama, dentro do coração, a sombra a tapar metade da fotografia.
(Desta cidade guardo a data de nascimento, um telhado, uma figura na neblina. As crianças correm para o rio, mesmo que fique a cem quilómetros de distância. O medo permanece, mesmo nos melhores livros. Abre a janela, ao fundo do bosque. Entreolha essa gota de suor. Vem mostrar um rosto quase escondido: a música, uma ponte que não termina – e só assim alcança esta margem.)



(Texto - publicado no jornal O Zurara, de Mangualde - e foto de RV.)

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