sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Um exemplo discreto
(in O Distrito de Portalegre, de 31/1/2008)


José Régio quis escrever em 1941 as linhas seguintes: “Muitas vezes tenho pensado com tristeza [...] que bem escassos são em Portalegre os interesses de ordem intelectual, cultural, espiritual.”. Essa opinião, com matizes mais profundos, não andava longe da impressão fugaz de Fernando Pessoa, que em Portalegre estacionou em 1909 e numa carta afirmara: “Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter [...], em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semi-espanholismo e nada.”. Mais acutilantes haviam sido as frases do magistrado e contista Trindade Coelho que, no final do século XIX, assim escreveu: “Em Portalegre estive 4 anos [...]. / A terra era muito política (no pior sentido desta má e feia palavra!) – e o partido que estava no governo começou logo a embirrar comigo, porque eu, no exercício do meu cargo, cortava a direito sem querer saber de política nem de políticos...
Tantos anos passados, muitos aspectos terão melhorado. Mas, como provam até à saciedade os textos literários, sociológicos e históricos de diversos autores, se “a alma do Homem é que dá corpo à cidade”, continuam a existir em Portalegre fenómenos preocupantes pelo seu atavismo, pelo seu fechamento, pela sua falta de exigência ética, moral e cívica, pela maneira como mostram uma sociedade em que o mérito, a liberdade e a democracia são ainda, em grande parte, uma miragem. Só assim se explica que, aí, continuem existindo, impunes, instituições públicas que utilizam o dinheiro dos contribuintes na promoção de medíocres e na valorização de cidadãos cujas más acções são conhecidas, poderes ilegítimos que dominam e manipulam os legítimos, meios de censura velados mas eficazes. A situação é inquietante. No meio desse negrume, salvam-se felizmente alguns exemplos de acção pública que, mesmo discretos, conseguem iluminar nesgas do viver social.
Entre esses cidadãos que, pela sua simples presença, já constituem marcas positivas, poderia salientar vários, uns falecidos (como Baptista Tavares ou Amorim Afonso), outros felizmente ainda vivos (como Nicolau Saião ou Garcia de Castro). Quero, no entanto, sublinhar neste artigo João Ribeirinho Leal. O pretexto é o seu milésimo “Ponto de Vista”, mas esta coluna (caso de longevidade na imprensa regional) é apenas uma das formas de expressão da actividade de um cidadão que, sem pretensões, se tem preocupado sobretudo com a sua coerência e com o seu exemplo cívico.Podemos gostar ou não de quanto escreve, de quanto diz na rádio, de quanto desenvolve e apoia na região, mas um defeito que nunca lhe apontaremos é o da falta de estrutura vertebral. A sua acção, já com algumas décadas, submete-se sempre ao imperativo testemunhal. E dar testemunho, para Ribeirinho Leal, é promover a Justiça, num labor que procura iluminar – mesmo com meios modestos – os exemplos humanos positivos da sociedade regional em que vive e as facetas menos desagradáveis de alguns seres com que se depara. Como cristão, não receia ainda denunciar comportamentos indignos ou desumanos que é preciso expulsar da vivência do dia-a-dia. Para tudo isto, rompe (discretamente) cortinas de fumo produzidas por quantos desejam lançar no esquecimento os méritos que relevam, por contraste, a sua mediocridade ou a sua maldade. Isto (e não é pouco...) lhe deve Portalegre e o seu distrito – logo, todos nós, que nesse espaço vivemos ou a ele estamos ligados. Exemplos como o dele (mesmo discretos), sendo raros, devem ser aplaudidos e acarinhados, para que possam multiplicar-se.

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