MILAGRE QUE
FEZ
Ex-voto do
Senhor dos Aflitos reaparece
mais de 40
anos depois de “perdido”
Nunca estaremos
suficientemente gratos aos coleccionadores de arte sacra do nosso país. Pensemos
o que pensarmos sobre o seu amor às peças que foram e vão juntando ao longo de
uma vida, quantas vezes com sacrifício pessoal, temos de reconhecer que graças
à sua actividade se salvaram e salvam muitas obras da nossa cultura. Essa
gratidão deve ser ainda maior quando, em determinado momento da sua vida, se
sentiram na obrigação de devolver as peças adquiridas ao usufruto público,
cedendo-as ou vendendo-as a museus ou a outras instituições que, de algum modo,
continuaram e/ou continuam a sua devoção àqueles objectos, onde as mãos dos
criadores humanos tentaram expressar a sua interpretação da palavra de Deus, da
religiosidade humana ou das figuras e narrativas que, ao longo de séculos,
edificaram a história religiosa de Portugal e de outras paragens. Nunca é
demais lembrar as palavras do Papa Francisco que, num livro intitulado “La Mia
Idea di Arte” (infelizmente indisponível em português), sublinha o papel
evangelizador da pintura, da escultura, da arquitectura, da música e de outras
artes, ao serem, mais do que muitos discursos teológicos, vias eloquentes de interpretação
da revelação apostólica. Essa sua capacidade não se esbate nem desaparece
quando as peças, levadas por circunstâncias diversas, saem dos edifícios
religiosos. Tornam-se antes vias especiais que continuam a levar, subtilmente, mesmo
aos descrentes, a mensagem divina.
Não podemos esquecer o
quanto devemos agradecer aos coleccionadores “de santos”. Sem eles, muito
património ter-se-ia perdido, levado pela ignorância e pela arrogância dos
homens (clérigos e leigos), pela ambição e pela estupidez que moveu tantas
épocas da nossa História, pelas “modas” que, frequentemente, lançaram para a
poeira das arrecadações das igrejas esculturas, pinturas, livros, alfaias e
outros objectos valiosíssimos e belíssimos, só porque não correspondiam aos
padrões “estéticos” daqueles que eram os seus fiéis depositários. Dizia-me há
anos um importante responsável eclesiástico do nosso país que, “muitas vezes,
até os ladrões valorizam mais as peças que a Igreja possui do que muitos dos
seus detentores, cuja única preocupação é vender ou atirar para o lixo o que
parece velho e inadequado à sua miopia ou mandar repintar nos santeiros de
Braga e de Fátima as peças que os nossos antepassados nos legaram…”
Acrescentava: “Pelo menos os ladrões e os coleccionadores dão valor ao que
temos…”
Na altura, as suas
palavras deixaram-me sem resposta e puseram-me a pensar. Embora reconhecendo as
várias excepções que há pelo país, cujo mérito nunca será demais realçar (sobretudo
perante os que agem de outro modo, vandalizando o que no fundo não lhes
pertence), vi-me obrigado a concordar com esse prelado. E, cá entre nós, o
tempo tem-lhe dado razão.
Homens como José Régio,
Ruy Sequeira, Ernesto Vilhena e alguns mais cumpriram um papel importantíssimo
na nossa cultura. Podemos discutir os seus métodos e o seu sentido de
oportunidade, o cuidado que nem sempre tiveram no registo da proveniência das
obras de arte que foram comprando, mas temos de nos vergar à lógica da sua
actuação e à maneira como, depois, devolveram o património ao público mais ou
menos crente. Se nem todas as instituições a quem legaram ou venderam as suas
colecções se mostram dignas desse património recebido, é outra conversa que não
cabe neste artigo. Pensemos nas que têm trabalhado de outro modo, dando bons
exemplos, como o Museu Nacional de Arte Antiga, a Casa-Museu José Régio, a
Casa-Museu Padre Belo, o Museu da Consolata em Fátima ou a Fundação Robinson.
*
Vem esta introdução a
propósito de uma peça portalegrense recentemente redescoberta pelo autor deste
artigo. Trata-se de um dos ex-votos pertencentes ao espólio do Santuário do
Senhor Jesus dos Aflitos, situado na paróquia de São Domingos dos Fortios, no
concelho de Portalegre.
Local de culto nascido por
volta de 1713 à sombra de uma pequena cruz de madeira, onde foi pintada a
figura de Cristo paciente e sofredor, é ainda hoje um eixo da religiosidade do
Alto Alentejo, movendo devotos e peregrinos, sobretudo no dia da sua festa,
actualmente celebrada no início de Maio. O trabalho meticuloso e incansável do
Cónego Bonifácio Bernardo tem permitido aos interessados um conhecimento
pormenorizado da sua história, cuja leitura enriquece o nosso entendimento das
múltiplas dimensões da vida dessa parte de Portugal nos últimos trezentos anos.
É imprescindível ler o seu livro “Senhor Jesus dos Aflitos, Origens –
1713-1845” (Edições Colibri, 2000), sendo ainda muito importante consultar outro
volume em que editou um parte da documentação do santuário; prevê-se para breve
um terceiro – e com impaciência o aguardamos.
Entre o património dessa
igreja, situada numa herdade, entre sobreiros, avulta a sua colecção de
ex-votos, pequenos quadros gratulatórios oferecidos ao longo de séculos pelos
devotos, manifestando e dando graças pelos prodígios que viveram por
intercessão do Senhor. O conjunto não tem a dimensão dos que se podem admirar
no Senhor Jesus da Piedade (Elvas), na Senhora do Carmo (Azaruja, Évora) ou na
Senhora d’ Aires (Viana do Alentejo), mas ultrapassando a meia centena são um
importante testemunho artístico, antropológico, sociológico e religioso da
devoção secular. Podem hoje ser admirados por quem se disponha a folhear o
catálogo da exposição itinerante “Imagens de Fé”, promovida pela Diocese de
Portalegre – Castelo Branco; o conjunto portalegrense foi, aliás, o motor dessa
mostra. Se a exposição não se preocupou com o enquadramento histórico das peças
(o que se lamenta), tal não diminui de modo algum o seu valor e oportunidade.
Desde há algumas décadas
que se sabia, contudo, que faltava à colecção dos Aflitos um dos seus mais
interessantes ex-votos, ainda do século XVIII. Observado e registado pela
investigadora Maria Tavares Transmontano, que copiou e publicou a sua inscrição
na sua “Monografia de Portalegre” (1997), terá levado descaminho entre 1965 e
1975. Era dado como perdido, sem se saber sequer se o desaparecimento seria
devido a roubo ou a venda indevida. Nem uma foto ficara dele…
Há poucos dias, folheando
o volumoso catálogo intitulado “Christus”, editado no Porto pela Irmandade dos
Clérigos como veículo de divulgação da colecção de imagens de Cristo que agora
aí se expõem, após doação da colecção do Dr. António Miranda, deparei-me na página
171 com o ex-voto desaparecido do Santuário do Senhor dos Aflitos. Calcularão o
que sentiu este investigador e defensor do património religioso da sua terra e
de outras terras…
Registado com o número de
inventário ICP 1576, tem 24,6 cm de altura por 39,4 de largura. É uma pintura a
óleo sobre madeira, datada de 1777, com a seguinte inscrição (sou fiel à
ortografia original): “Milagre que fes o
Senhore dos Afelitos a Francico Antonio que foi cazeiro na erdade do Alcade que
sendo acometido por hum lobo deramado este ce lhe lancou aos peitos de que
resultou o bradar pelo Senhore dos Aflitos imediatamente o dito lobo se retirou
ficando o dito devoto sem nen huma lezaõ foi feito este milagre no anno de 1777”.
A mão, popular, que executou esta obra foi também autora de outras pinturas
existentes no Santuário, tendo inclusive repintado os ex-votos mais antigos.
Impõem-se, agora, todas
as necessárias diligências para que o seu volte ao seu dono e o “prodígio” se
complete. A Paróquia dos Fortios e a Diocese não deixarão morrer decerto o
assunto. Sabemos agora onde está e quem lá o depositou. Só não sabemos como
chegou às mãos do coleccionador…
Tantos anos depois, bem
podem os portalegrenses dizer como escreviam os antigos autores dessas
pinturinhas: “Milagre que fez o Senhor dos Aflitos…”
(Artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", nº. 584, de 25 de Julho/2018.)